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Foto: Agência Brasil

Opinião

Sim, houve ditadura. E foi sangrenta e assassina

04.04.2022 07:40 0

Coluna
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Anualmente, a cada 31 de março, retornam as surradas tentativas de reescrever a história. No ano passado, Bolsonaro mandou o Ministério da Educação substituir as palavras “golpe” e “ditadura” num quesito da prova do ENEM e por no lugar a palavra “revolução”.  Uma tentativa, como tantas, de retirar o caráter golpista e autoritário da investida da quartelada contra as instituições democráticas, pensamento que ainda perdura em boa fatia das forças armadas, sobretudo entre os militares mais antigos. Este ano, o saudosismo nojento voltou pela nota do Ministro da Defesa, general Braga Neto. Todo ano a farsa se repete.

“Há soldados armados, amados ou não/ quase todos perdidos/ com armas na mão/ nos quartéis lhes ensinam/ antigas lições/ de morrer pela pátria/ e viver sem razão”

Ultimamente, esse tipo de manifestação já deixou de ser vista   como provocação ou patriotada. Trata-se, apenas, de um anacronismo ridículo de tentar fazer com que a história caiba na fôrma desenhada pelos saudosistas da ditadura. A nota repete jargões mofados. Custa a crer que um General de Exército, 58 anos depois do golpe de 64, ainda tenha a coragem de considerar o golpe, que ele denomina de “o Movimento (sic) de 31 de março” um “marco histórico da evolução política brasileira”, sob o argumento de que teria refletido “os anseios e as aspirações da população da época”.  Evolução política onde, cara-pálida? Anseios de que população? Um movimento de tamanha brutalidade como a ditadura militar pode ser considerada uma “evolução” em que planeta, de que galáxia, em qual nebulosa? Só o levantamento da Comissão Nacional da Verdade identificou 191 brasileiros que resistiram à ditadura e foram… mortos. 210 estão até hoje desaparecidos e foram localizados apenas 33 corpos, totalizando 434 militantes mortos e desaparecidos. E os agentes dos órgãos de repressão do Estado, até agora identificados, responsáveis pelas torturas e assassinatos, totalizam 337. É pouco ou quer mais? Que “evolução” é essa?

Isto sem falar na tortura praticada nos porões da ditadura. Segundo o relatório “Brasil: Nunca Mais”, trabalho liderado pelo saudoso bispo Dom Paulo Evaristo Arns, essa tal de “evolução” do general Braga Neto foi responsável por quase 2 mil prisioneiros políticos que atestaram ter sido torturados entre 1964 e 1979. Isto dentro do intervalo estabelecido para o exame – 15 de março de 1979 data-limite do período investigado. O documento descreve 283 diferentes formas brutais de tortura utilizadas na época pelos órgãos de segurança da “evolução”.

Pai, afasta de mim esse cálice (ou seria cale-se?) de vinho tinto e de sangue

A mesma “evolução” do general Braga Neto censurou, proibiu, dilacerou ou simplesmente impediu a circulação de veículos que publicassem quaisquer matérias sobre a ditadura. Em 1972, o jornal “O Estado de São Paulo” transcrevia uma determinação que exemplifica muito bem como a “evolução” agia:

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“De ordem do senhor ministro da Justiça fica expressamente proibida a publicação de: notícias, comentários, entrevistas ou critérios de qualquer natureza, abertura política ou democratização ou assuntos correlatos, anistia a cassados ou revisão parcial de seus processos, críticas ou comentários ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira, ou problema sucessório e suas implicações. As ordens acima transmitidas atingem quaisquer pessoas, inclusive as que já foram ministros de Estado ou ocuparam altas posições ou funções em quaisquer atividades públicas”

 “Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”

 Durante a ditadura, até uma canção de amor escrita por Waldick Soriano foi censurada porque levava o título de “Tortura de amor”. Como era proibido usar a palavra “tortura”, esta foi mais uma  tentativa vã – e ridícula – de esconder a prática escabrosa que ocorria nos quartéis e dependências do DOI-CODI.

Dr. Ulyses Guimarães pronunciou uma frase que virou mantra: “Sua excelência, o fato”, para se referir à irreversibilidade da verdade. A frase vai na mesma linha do brocardo espanhol: “los echos son los echos” (os fatos são os fatos). E ponto final. Ou seja: os fatos, ao contrário das opiniões, são irrefutáveis. Tal como é verdade que o Brasil promoveu um massacre contra os paraguaios, e por vergonha, até hoje os documentos sobre a guerra, que simplesmente destruiu o país vizinho entre os anos de 1864 a 1870 são guardados a sete chaves pelas autoridades militares. Mas o massacre, escondido ou não, houve. E ponto final. Conversando sobre esse assunto com o professor Antônio Barbosa, da Faculdade de História da Universidade de Brasília, ele foi categórico e definitivo: “não há registro em qualquer parte do mundo de alguma tentativa bem   sucedida de se reescrever a história”.

O General Braga Neto, que, pela relevância do cargo que ocupa tem por dever de ofício o respeito à verdade, perdeu-se pela palavra. Todo mundo, em toda parte, desde que o tempo é tempo, sabe uma verdade mais velha que a Sé de Braga (ooops!): não se reescreve a história.

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Houve ditadura, sim, e com esse nome. Que censurou, assassinou e torturou. É um fato, e contra fatos não há argumentos. Los echos son los echos.

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