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‘Caranguejo Overdrive’ atualiza estética da lama

Wagner Correa de Araújo *

No prólogo de seu único livro de ficção, o cientista Josué de Castro afirma, convicto: “No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama”. Tais palavras, de dolorosa acidez, inspirariam um dos mais surpreendentes textos da nova dramaturgia carioca – Caranguejo Overdrive, de Pedro Kosovsky.

A partir desse mote de carga metonímica, o enredo teatral faz uma incisiva incursão histórica, social e política, num tema com transmutação conceitual em duas épocas. O engajamento não voluntário na Guerra do Paraguai de um miserável habitante do mangue, decadente zona do Rio capital imperial, acaba conduzindo-o ao delírio mental.

Sujeito a toda insensatez da precária e cruel realidade do front brasileiro, de sanguinária justificativa no polêmico ideário de guerra patriótica, o soldado Cosme (Matheus Macena) retorna, doente, à sua cidade de origem. E o seu reencontro com o mangue, em obras, acelera seu estado psicótico, da lama para a lama, atolado de corpo e alma.

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A multiplicidade de elementos estéticos que confluem na arquitetura cênica e dramatúrgica dessa montagem alcança, na impactante concepção cênica e comando de Marco André Nunes, uma enérgica densidade performática capaz de não deixar incólumes corações e mentes, palco e plateia.

Aqui convergem efusivas declamações poéticas, amplificadas na narrativa comportamental de uma cidade violentada. Com a plasticidade visual da instalação realística (areia, lama e caranguejos), ressaltada por uma luz de sombras (Renato Machado) e pela visceralidade da trilha/tributo ao Mangue Beat (executada ao vivo por Felipe Storino, Maurício Chiari e P. Kosovski).

A alternância dos personagens impressiona pela coesão expressiva e vitalidade física do desempenho (Matheus Macena, Eduardo Speroni, Alex Nader, Felippe Marques, Carolina Virguez), atingindo sua culminância no desafio dos limites da resistência corporal, na simbológica escultura, viva e enlameada, do homem/caranguejo.

Na pluralidade de suas linguagens artísticas, Caranguejo Overdrive deixa, ao final, com sua estética da lama, entre a sujeira e a miséria, o consistente dimensionamento de um “work in progress”, capaz de reflexiva e fértil provocação.

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Desdobrando-se, ainda, no referencial filosófico e ideológico do metafórico conceito de Josué de Castro:

“Cedo me dei conta desse estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como caranguejos para poderem sobreviver”.

* Jornalista especializado em cultura, roteirista, diretor de televisão e crítico de artes cênicas, dirigiu os documentários O grande circo místico e Balé Teatro Guaíra 30 anos. Participou como crítico e jurado de festivais de dança e cinema no Brasil e na Europa. Este texto foi publicado originalmente no site Outras Palavras.

Caranguejo Overdrive está em cartaz no Rio de Janeiro até 16 de agosto, de sexta a domingo, às 21h, no Espaço Sesc Mezanino (Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Metrô Siqueira Campos, fone 2547.0156).

 

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