Rodrigo Chia*
Quando cheguei ao Distrito Federal, já se vão quase 15 anos, não levava muito a sério a tese de que os temas locais acabam sempre ofuscados pelo noticiário nacional. Infelizmente os fatos insistem em mostrar que estava errado.
Nesta semana, o grande assunto na capital (e no país) é a CPI da Pandemia, instalada no Senado Federal em meio a polêmicas e troca de acusações. Com quase 400 mil mortes e 15 milhões de casos no país, e muitas pontas soltas no enfrentamento às trágicas consequências da covid-19, a relevância da criação da comissão é inegável.
Não se trata, porém, do que está em destaque, mas do que não está. Na terça-feira (27), foi registrada a oitava assinatura – e última necessária – para a instalação na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) de uma CPI para apurar denúncias envolvendo o Instituto de Gestão Estratégica da Saúde do Distrito Federal (IGES-DF).
O IGES-DF, constituído como um atípico “serviço social autônomo”, de direito privado, embora criado com a promessa de aumentar a eficiência de unidades de saúde e reduzir custos, tem se destacado pelos repasses vultosos de dinheiro público e dívidas crescentes, bem como por denúncias que vão de direcionamento de contratos a gastos indevidos com cartão corporativo.
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O requerimento de CPI do IGES-DF atende os requisitos constitucionais de apoio de pelo menos um terço dos membros da casa; fato(s) determinado(s); e prazo de funcionamento definido. No entanto, não é o primeiro voltado à área da saúde apresentado na CLDF durante a pandemia da covid-19.
Desde agosto de 2020, aguarda definição por parte da Mesa Diretora da CLDF requerimento para uma CPI da Pandemia, que chegou a ter 13 assinaturas de apoio – mais da metade da composição de 24 deputados distritais. A última posição oficial da Mesa é de que outra CPI, a dos Maus-Tratos de Animais, com requerimento mais antigo, teria precedência em relação à da Pandemia. Essa CPI, contudo, tampouco foi instalada até agora.
As CPIs – Comissões Parlamentares de Inquérito – são previstas na Constituição e definidas como um “direito da minoria”. Ou seja, a exigência do apoio de apenas um terço dos membros da casa legislativa tem como finalidade garantir que fatos graves, que mereçam apuração própria do Legislativo, não acabem varridos para baixo do tapete por uma eventual maioria governista.
Ser um direito da minoria não corresponde a dizer que uma CPI seja vontade de uma minoria. Não se deve confundir minoria parlamentar e minoria popular. Teorias políticas à parte, são comuns cenários em que as posições assumidas no parlamento por representantes eleitos (democraticamente!) não correspondem, exatamente, aos anseios dos cidadãos.
Por isso, aliás, existem, de maneira complementar, mecanismos de democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa, consagrados no art. 14 da Constituição. São formas de a população decidir ou propor medidas independentemente da posição de seus representantes eleitos.
A Lei Orgânica do DF não só reproduz essas previsões constitucionais como acrescenta a possibilidade de iniciativa popular para instalação de CPIs. Com base nisso, recentemente organizações de atuação local e nacional iniciaram um movimento para uma CPI Popular da Pandemia no DF, que vem coletando apoio da população pelo aplicativo Mudamos.
Estariam todas essas manifestações por uma CPI para apurar questões relacionadas à saúde no DF equivocadas? Seria tudo um grande delírio coletivo? Um argumento frequente contra a instalação de uma CPI é o de que “neste momento o foco deve ser o combate à pandemia”. Ora, pelo menos desde março de 2020 o foco é, ou deveria ser, o combate à pandemia; nem por isso pode se dizer que se tenha feito um trabalho exemplar na execução dessa tarefa. O DF registra cerca de 7.700 mortes por covid e relatos preocupantes envolvendo decisões sanitárias, insumos, leitos de UTI e vacinação.
A apuração – responsável e técnica – de denúncias de irregularidades, desvios e omissões, longe de atrapalhar o trabalho de um governo, tem o potencial de fortalecer não só o enfrentamento imediato à pandemia, mas a gestão da saúde no DF, inclusive para o futuro. Esclarecer e responsabilizar permite corrigir falhas e definir melhores ações.
É urgente, portanto, que a população e as autoridades do Distrito Federal entendam a situação e cobrem a devida apuração dos fatos. É necessário lançar luz sobre a gestão da saúde no DF. Sim, porque a CPI é um direito e um instrumento democrático. Mas sobretudo porque corrigir rumos, de maneira transparente, literalmente salva vidas.
*Rodrigo Chia é advogado, ex-presidente do Conselho de Transparência e Controle Social do DF, membro da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) e da Comissão de Combate à Corrupção da OAB/DF, voluntário do Observatório Social de Brasília.
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