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HISTÓRIA

Junho de 2013 e os fantasmas da esquerda brasileira

Manifestantes no Congresso Nacional, 17 de junho de 2013. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Manifestantes no Congresso Nacional, 17 de junho de 2013. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Vinícius Wu* 

Junho de 2013 é um desses acontecimentos históricos que não apenas são interpretados e reinterpretados ao longo dos anos como também se transformam em objeto de disputa opondo hipóteses interpretativas e argumentos que falam sobre o passado e, principalmente, sobre o presente. A construção da memória social – ou das diferentes memórias sociais – é um processo vivo, dinâmico e permanentemente sujeito a mudanças. E, logo, não surpreende que a memória relativa a um episódio da magnitude dos protestos de 2013 se altere com o tempo.

A forma como a esquerda brasileira – ou, ao menos, boa parte da esquerda – interpretou aqueles acontecimentos mudou. E o problema, como buscarei demonstrar aqui, é que parte importante dos argumentos mobilizados atualmente contradizem dados e informações fundamentais à compreensão do fenômeno. Junho de 2013 passou a ser lido por aquilo que foi, jamais pelo que poderia ter sido. Assim, uma parcela expressiva da esquerda busca explicar 2018 a partir de 2013. Aquelas manifestações marcariam o início da ascensão da ultradireita no Brasil. Junho seria, então, o “ovo da serpente”. Alguns vão além e percebem as manifestações como resultado de uma grande conspiração orquestrada pela CIA e demais inimigos da soberania nacional.

Protestos de 2013, Lava Jato, golpismo, avanço do neofascismo seriam, então, parte de um mesmo processo, de um mesmo movimento criado para desacreditar e afastar a esquerda do poder, abrindo espaço para a emergência de um período de radicalização da agenda neoliberal. Como se a história fosse assim, linear, pré-determinada, previsível. As manifestações daquele ano foram ressignificadas a partir do impeachment de Dilma, da prisão de Lula e da eleição de Bolsonaro.

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Mas será que esta interpretação encontra lastro na realidade? Seria possível validar essa hipótese com alguma base empírica? Ora, o que temos à nossa disposição para verificar a validade destes argumentos são as pesquisas de opinião e os estudos sobre o perfil dos manifestantes produzidos à época por diferentes instituições. Revisitemos alguns dados.

Alguns dias após o início dos protestos de 2013, o Datafolha divulgou um levantamento sobre o perfil ideológico dos manifestantes presentes na Avenida Paulista. De acordo com o instituto, 36% dos participantes se identificavam como sendo de esquerda ou centro-esquerda, contra apenas 10% que se definiam abertamente como apoiadores da direita. Os que se percebiam como centristas somavam 31% e os de centro-direita, 11%. Os manifestantes, portanto, estavam ‘à esquerda’ da média geral verificada entre os moradores de São Paulo, já que no conjunto da cidade apenas 24% se declaravam como sendo de esquerda ou centro-esquerda.

Outro dado relevante diz respeito ao desempenho dos candidatos à sucessão presidencial de 2014 nas pesquisas eleitorais divulgadas antes e depois dos protestos. Num primeiro momento, quem mais ganhou com as mobilizações de junho de 2013 foi Marina Silva, que dificilmente poderia ser enquadrada como uma candidata de direita. Mas seu crescimento foi efêmero e logo se esgotou, resultando na recuperação da principal candidatura de esquerda poucos meses após os protestos. É o que revela a pesquisa Ibope divulgada em 26 de setembro daquele ano. Entre março e julho, a então pré-candidata da Rede saltou de 12% para 22% nas intenções de voto, enquanto a candidata à reeleição pelo PT, Dilma Rousseff, caiu de 58% para 30%. Aécio Neves, que àquela altura poderia ser considerado o candidato da direita e centro-direita, avançou apenas 4 pontos percentuais no mesmo período. E já no levantamento de setembro, Dilma recupera terreno, avançando para 38% e Marina oscila pra baixo, assim como Aécio, de 22% para 16% e de 13% para 11% respectivamente.

Ao analisarmos a pauta inicial apresentada pelos protestos de junho, verifica-se outro problema para a tese do “ovo da serpente”. A agenda das manifestações de 2013 era claramente progressista. O Datafolha realizou um levantamento entre os manifestantes de um dos primeiros atos, realizado no Largo da Batata, na cidade de São Paulo. Para 56% dos participantes, o protesto tinha como motivação o aumento da tarifa do transporte público. Outros 27% afirmavam estar lutando por um serviço de transporte público de melhor qualidade. E num levantamento realizado pelo Ibope no dia 20 de junho daquele ano, ouvindo manifestantes de sete estados (SP, RJ, MG, RS, PE, CE e BA), novamente o transporte público aparece como principal reivindicação somando 37,6% das menções. Saúde foi mencionada por 12,1% dos manifestantes e educação por 5,3%. Há outros sinais que indicam que parte expressiva dos manifestantes estava ali exigindo serviços públicos de maior qualidade e mais (não menos) presença do Estado.

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Em relação ao perfil social, econômico e etário dos manifestantes, percebe-se mais um constrangimento à hipótese de que junho de 2013 tenha sido a origem de todo o mal. Inicialmente, as mobilizações eram, majoritariamente, compostas por jovens (43%), de renda até 5 salários mínimos (45%) e sem curso superior completo (57%). Os dados também são do Ibope e abrangem os sete estados mencionados anteriormente. E aqui cumpre fazer uma importante observação: há uma omissão intencional nos argumentos apresentados pelos que defendem a tese do “ovo da serpente”, afinal, entre os protestos de 2013 e os de 2015/16 houve uma mudança significativa no perfil dos manifestantes. Nas mobilizações a favor do impeachment de Dilma Rousseff, verificou-se um significativo aumento da renda, da escolaridade e da faixa etária dos manifestantes. Há inúmeros levantamentos que atestam este fato. Os manifestantes de 2015/16 não eram os mesmos de 2013. E se é verdade que a esquerda “perdeu” a hegemonia das ruas pós-2013, não parece razoável supor que isso tenha a ver com o perfil social da primeira leva de manifestantes.

Portanto, ao analisarmos junho de 2013 com base em dados e evidências, torna-se um pouco mais difícil sustentar a tese do “ovo da serpente”. A identidade ideológica dos manifestantes, o impacto sobre a corrida presidencial (é sempre bom lembrar que Dilma foi reeleita mesmo após os protestos), o perfil social, econômico e etário dos manifestantes e, principalmente, a agenda dos protestos desautorizam a hipótese de que os protestos já possuíam um caráter protofascista em seu nascedouro. E ainda que se admita o argumento de que com o passar do tempo a agenda dos protestos tenha sido “capturada” pela direita (e parece que foi mesmo), é inegável que as demandas sociais apresentadas pelas ruas daquele ano tinham muito mais a ver com o aumento da presença do Estado e com o fortalecimento de políticas públicas de caráter progressista do que o contrário.

O fato é que parte importante da esquerda brasileira parece ter feito uma opção deliberada por se abster da reflexão crítica acerca dos motivos da emergência do mal-estar de 2013. Reinterpretar as “jornadas de junho” a partir do que ocorreu entre 2015 e 2018 parece uma saída mais confortável, que isenta partidos e lideranças políticas deste campo de algum nível de responsabilidade não apenas pela explosão dos protestos, mas, principalmente, pela incrível dificuldade em interpretar e agir sobre um processo político e social que, de fato, moldou a vida do país nos anos seguintes. E, assim, muitos fantasmas foram silenciados ou ignorados no último período, mas eles seguem rondando o ambiente apesar da imensa vontade em esquecê-los.


* Vinícius Wu é historiador e pesquisador da PUC-Rio.

O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].

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