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Ala do MP quer abastecer SUS de cloroquina, droga descartada pela OMS

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O uso de cloroquinahidroxicloroquina e do vermífugo nitazoxanida para o tratamento contra a covid-19 tem sido defendido por um grupo de membros do Ministério Público, alguns deles filiados a uma entidade civil autointitulada Associação Nacional de Membros do Ministério Público – MP Pró-Sociedade.

MP Pró-Sociedade tem entre os seus objetivos “propor alterações legislativas ou estruturais para o aperfeiçoamento do sistema de justiça e para a redução da impunidade”. Entre outras teses, coloca-se contra a “ideologia de gênero”, apoia medidas de endurecimento penal e tem feito críticas públicas ao STF, em especial no que toca à condução do inquérito das fake news. 

Referidos integrantes do Ministério Público advogam a favor dos medicamentos em reuniões com médicos, agentes públicos e também na Justiça. Os membros do MP que defendem o uso da cloroquina contra a covid-19  alegam que o produto não tem sido distribuído na rede pública, embora o Ministério da Saúde admita a sua utilização em casos mais leves da doença.

Márcio Luís Chila Freyesleben, presidente do MP Pró-Sociedade, responde à representação recente junto ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em razão de suas postagens na internet sobre a pandemia. Chila é procurador de Justiça do estado de Minas Gerais e foi o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG) que pediu para sua conduta ser examinada pelo CNMP.

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Entre as afirmações de Márcio Chila que geraram a solicitação está a definição da pandemia de covid-19 como uma “velhacaria globalista”. No pedido, o CNPG também defende que a entidade seja proibida de usar a expressão Ministério Público em seu nome, “com o propósito de resguardar a dignidade e integridade da imagem do Ministério Público brasileiro”. “Pandemias são estratégias para que assimilemos a perda de liberdade de maneira dócil e servil”, disse Chila.

Ineficácia

O debate judicial sobre o uso de cloroquina tem como pano de fundo as pressões do presidente Jair Bolsonaro para que ela seja formalmente incorporada como tratamento contra a covid-19.

Daniel Dourado, médico e e advogado sanitarista do Núcleo de Pesquisa e Direito Sanitário da USP [Reprodução/Twitter]

De acordo com o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, do Núcleo de Pesquisa e Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP), embora haja essa orientação do Ministério da Saúde, não existe um protocolo sanitário para a administração do remédio.

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“Não se pode incorporar um protocolo sem evidência científica de que o medicamento funciona. A nossa legislação deixa isso claro. Se o medicamento fosse incorporado ao SUS, obrigatoriamente passaria a ser usado. E por que não pode? A Lei Orgânica [do SUS] 8080 tem um dispositivo que foi incorporado em 2011, o artigo 19Q, que fala justamente que é preciso ter evidência científica para a incorporação de protocolo clínico e diretriz terapêutica. Neste caso, o benefício não supera o risco. Não faz sentido usar porque não temos ensaio clínico que aponta eficácia”, explica.

Segundo Daniel Dourado, o Ministério da Saúde lançou uma espécie de “protocolo extraoficial”, causando dois problemas. “Induz os médicos a usar o medicamento, porque ele lê aquilo e pensa que se o Ministério da Saúde está orientando a usar cloroquina, deve usar, significa que resolve, mas acontece que não resolve. Outro problema é que cria um fato político para que as pessoas se sintam seguras. Tem tratamento, então não precisa mais de isolamento. Acho que a intenção, no limite, foi essa. Dar uma sensação de segurança porque ‘agora já tem o remédio'”.

Além disso, a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) e diferentes associações médicas e estudos científicos globais desencorajam a utilização dos medicamentos por não demonstrarem eficácia no combate à covid-19. A OMS anunciou no último sábado (4) a retirada da hidroxicloroquina e do lopivanir/ritonavir de seus testes científicos contra a  covid-19. O medicamento já havia sido suspenso pela falta de resultados.

Ações nos estados

Diante da lacuna na regulamentação e agindo contra essas recomendações médicas, membros do MP Pró-Sociedade têm atuado em diferentes frentes em favor da distribuição e do uso da cloroquina e de outras substâncias contra a covid-19 na rede pública de saúde, segundo relatou uma fonte ouvida sob condição de anonimato pelo Congresso em Foco.

Em dois estados (clique nos links para ver as íntegras), Minas Gerais e Goiás, a iniciativa tomou a forma de recomendações formais, enviadas a governadores e prefeitos,  com o mesmo objetivo: garantir a disponibilidade dos medicamentos no SUS. No Piauí, foi proposta na Justiça uma ação de obrigação de fazer, na qual a União, o governo estadual e a Prefeitura de Teresina são provocados a fazer o mesmo. No Distrito Federal, também há uma ação no mesmo sentido, mas não está vinculada à ação do grupo.

Em junho, membros do Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia Covid-19 (Giac) do Ministério Público participaram de uma reunião com o procurador da República Ailton Benedito de Souza, um dos fundadores do MP Pró-Sociedade e autor da recomendação de Goiás. Também participaram do encontro representantes do Conselho Federal de Medicina (CFM), da Associação Médica Brasileira (AMB) e outros especialistas para debater sobre a utilização em larga escala do medicamento, adotando a cidade de Porto Feliz (SP) e o estado do Amapá como modelos.

As ações ajuizadas em Minas Gerais e Goiás são assinadas por procuradores membros do MP Pró-Sociedade. No Piauí, apesar de o procurador signatário não estar na lista dos fundadores do movimento, a fundamentação técnica é de médicos que participaram da reunião do Giac.

Falta de evidências

O movimento, aponta o médico infectologista Daniel Dourado, é político. “A cada hora aparece uma nova droga que vai ser a da vez. Começou com a cloroquina e o Ministério da Saúde, numa jogada puramente política, não decidiu um protocolo clínico oficial para o medicamento porque não pode”. Ainda segundo o médico, “tem promotor de justiça que não tem noção disso e que está querendo forçar sabe-se lá por qual motivo, até por desconhecimento mesmo, e tem entrado com essas ações”.

O risco, diz, é adotar uma política pública em que vai se submeter a população inteira a “algo que não tem evidência científica, não tem eficácia de que funciona e, pelo contrário, a gente sabe que tem risco. É isso que o pessoal do Ministério Público precisaria entender”, defende.

O médico está ajudando na redação de uma carta para o decano Celso de Mello, que é relator de uma ação no Supremo Tribunal Federal contra essas medidas do Ministério da Saúde. O ministro deu cinco dias para que a pasta forneça informações sobre a recomendação de uso precoce da cloroquina no tratamento da covid-19. O prazo vence nesta quarta-feira (8). “Estamos explicando a ele situação de que não tem evidência científica de que cloroquina funciona.”

Os argumentos usados nas ações são embasados por uma junta médica que afirma que os profissionais de saúde são livres para receitar ou não o medicamento de acordo com sua avaliação e com os exames clínicos.

Em maio, o The Intercept Brasil publicou uma matéria em que mostrava a campanha ostensiva de Marina Bucar, médica piauiense que atua na Espanha, um dos países mais atingidos pela pandemia no mundo, em prol do medicamento no Brasil. Na época, o Ministério Público Federal do Piauí entrou com uma ação na Justiça obrigando a União, o estado e o município de Teresina a adotarem o “Protocolo covid-19″, como foi batizada a orientação feita por Marina. A justificativa, aponta o site, foram as “evidências de êxito capitaneadas pela médica piauiense”. Ela foi uma das que participaram da reunião do Giac em junho.

“É dever do Sistema Único de Saúde fornecer a obrigatória conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população, de modo a prover os doentes com os meios existentes e eficazes para seu tratamento”, diz o texto da ação civil pública endereçada ao estado do Piauí.

Daniel Dourado foi um dos que assinaram uma manifestação contrapondo essa ação no estado. No texto, ele aponta que “o MPF confunde conceitos e trata como evidência científica algo que não é. Relato de especialistas e descrição de série de casos não são admitidas como meios de formação de evidências científicas”. (confira aqui na íntegra)

O documento também diz que o Ministério da Saúde “cedeu por pressão política e decidiu liberar o uso de cloroquina como se fosse um tratamento estabelecido”. E que “a ação do MPF no Piauí pretende ampliar esse uso, forçando as autoridades sanitárias a adotarem o suposto protocolo clínico para uso em casos leves e estágios iniciais da doença Covid-19.”

O que diz o procurador

Congresso em Foco procurou o procurador da República Ailton Benedito, que assina a ação do estado de Goiás. Questionado sobre em quais estados o MP Pró-Sociedade está atuando para que o SUS forneça medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina e nitazoxanida, ele afirma que “a atuação institucional do MPF não tem relação com o MP Pró-Sociedade”. Diz ainda que só tem “conhecimento desta atuação que é minha, presentando MPF em Goiás” e que o MP Pró-Sociedade é “uma associação privada formada por integrantes do Ministério Público, mas que não tem relação com a atuação institucional do MPF”.

A reportagem também perguntou:

– O senhor sabe que há uma legislação que impede o Ministério da Saúde de fazer protocolos com medicamentos sem comprovação de eficácia? Esses pedidos não vão contra essa legislação?

– Por que este empenho em fazer com que os estados e municípios utilizem os medicamentos pelo SUS mesmo sem a recomendação de protocolos médicos nacionais e internacionais?

– Além dessa atuação, o senhor confirma a participação em reuniões e encontros com médicos e agentes públicos? Qual a pauta desses encontros?

– A ACP [ação civil pública]  advoga a favor do uso da cloroquina, mesmo não tendo sido comprovada sua eficácia para covid. Isso não seria suficiente para que não houvesse distribuição pelo SUS?

O procurador respondeu: “ACP não advoga. A ACP é exercício das atribuições do MPF em defesa do direito à saúde dos pacientes do Sistema Único de Saúde. No caso, cumprindo a Constituição, a Lei 8.080 e a Lei do Ato Médico, que os medicamentos prescritos pelos médicos aos pacientes informados sejam dispensados pela gestão do SUS (União, Estado e Município)”. Ailton afirmou ainda que “as perguntas não têm base no que está posto na ACP”. (Confira na íntegra aqui)

Também foram procurados os membros da Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos do Consumidor (Prodecon), do Distrito Federal. Por e-mail a Prodecon afirmou que o procedimento no Distrito Federal tem o intuito de “acompanhar as medidas que vêm sendo tomadas por planos de saúde, hospitais particulares e farmácias para garantir atendimento aos pacientes com Covid-19 ainda nas fases iniciais da doença.”

Frente médica

Na mesma linha, um grupo de médicos vem promovendo diferentes lives para defender a distribuição do kit profilático. Algumas das vozes que encabeçam esse movimento são as da infectologista Luciana Cruz e da pesquisadora Nise Yamaguchi. Após a saída do ex-ministro da Saúde Nelson Teich, seu nome chegou inclusive a ser ventilado como possibilidade para a pasta. No entanto, desde maio, a Saúde está sob o comando interino do general Eduardo Pazuello.

O grupo criou o movimento “Covid tem tratamento sim” para ampliar o alcance de sua campanha pró-cloroquina.

No fim de junho, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia divulgou uma nota afirmando que “não existem evidências científicas de que quaisquer das medicações disponíveis no Brasil, tais como ivermectina, cloroquina ou hidroxicloroquina, isoladas ou associadamente, colaborem para melhor evolução clínica dos casos”.

Produção

Capitaneada desde o início da epidemia por Donald Trump e desde então festejada pelo presidente Jair Bolsonaro, a cloroquina passou a ser produzida no Brasil pelas Forças Armadas.

Em abril, Bolsonaro agradeceu publicamente ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, por liberar o envio ao país de um carregamento de insumos para produção de hidroxicloroquina. Até metade de maio, o Exército brasileiro produziu 1,250 milhão comprimidos de 150 mg do remédio.

Em junho, no entanto, o subprocurador-geral do Ministério Público de Contas, Lucas Rocha Furtado, pediu ao Tribunal de Contas da União a abertura de uma investigação sobre um possível superfaturamento na compra de insumos para produção do medicamento, conforme noticiou o UOL.

Já Donald Trump, que chegou a afirmar que tomou o medicamento de forma preventiva, mudou o discurso com relação ao uso da droga. A própria FDA, agência de controle de drogas dos Estados Unidos, revogou a autorização para uso de cloroquina e hidroxicloroquina em solo americano desde o último dia 15.

Nesta segunda-feira (6), no entanto, o presidente americano voltou a defender o medicamento em um post no Twitter.  O republicano afirmou que a droga “reduziu significativamente a taxa de mortalidade em pacientes doentes hospitalizados”.

Brasil e Estados Unidos são os dois países com maior incidência e mortos da doença no mundo. Somente nesta terça-feira (7)  o Brasil registrou mais 45.305 novos casos de covid-19, chegando a marca de 1.668.589 diagnósticos positivos. Ao todo, o país já perdeu 66.741 pessoas para a doença. Ainda nesta terça (7), o presidente Bolsonaro afirmou que testou positivo para covid-19 e que vem fazendo uso de cloroquina desde a noite de segunda-feira (6) de forma preventiva. Bolsonaro chegou a divulgar um vídeo em suas redes sociais dando publicidade ao uso da droga.

> Veja também: Associação do MP Pró-Sociedade pede direito de resposta.

Jornalista (PUC-PR) com mestrado em Sociologia: Cidades e Culturas Urbanas (Universidade de Coimbra). Tem passagens por rádio, revistas e jornais. Participou da cobertura de diferentes fases da Operação Lava Jato, em Curitiba, para O Globo. É autora do livro: Em pauta – Manual prático da comunicação organizacional.

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