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Satã, o comunavírus e o rock and roll

07.05.2020 07:30 0
Atualizado em 10.10.2021 17:37

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Vira e mexe, Satã volta à moda. As notícias da nova nomeação-exoneração (no mesma dia) do maestro Dante Mantovani para a Funarte recolocaram Satã na ordem do dia. O maestro (ex-assessor de Carlos Bolsonaro, o zero 02) associa Satã ao sexo, droga e rock and roll. Mantovani deve estar se lamentando, perdeu espaço no ninho do fundamentalismo religioso onde se sentiria à vontade na goiabeira da pastora Damares Alves e na companhia do ministro Ernesto Araújo, alucinado anti-comunista, a quem ajudaria a combater o satânico comunavírus. Um ninho de gente visionária, que vê Satã em tudo e em qualquer adversário, em todos aqueles que não pensam como eles.

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Devem ter alguma razão. O respeitado crítico literário norte-americano Harold Bloom dizia que Satã e os homens tem um parentesco próximo, pois os homens são todos seres libertinos, potenciais desobedientes. O próprio Satã, que andava meio esquecido, confinado aos tele-exorcismos das seitas neopentecostais, deve estar se sentindo a vontade: quando o invocam, ele surge logo. No atual governo, vira e mexe, Satã é invocado. Lembra o período medieval, um tempo muito parecido com a atual conjuntura do Brasil. Haja vista o ministério de Jair Bolsonaro, recheado de quixotescos combatentes anti-satânicos.

Por volta do ano 1200, um fanático monge alemão chamado Caesarius de Heisterbach disse que Satã era tão onipresente que era responsável até pelos erros ortográficos de quem escrevia mal. Nessa época, casos de histeria coletiva ou conflitos psíquicos eram inapelavelmente atribuídos a Satã. Entre os fundamentalistas de hoje, o medo a Satã continua ameaçador: ora ele é o comunavírus, ora se camufla em algum ‘esquerdista’, ora em comunistas comedores de criancinhas.

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Nunca é demais relembrar o famoso caso das bruxas de Salém em Massachusetts, Estados Unidos, em 1692: um surto local de sarampo, associado a casos de convulsão infantil, foi o combustível para despertar o fanatismo e a caça as bruxas: 150 pessoas foram presas e 20 barbaramente executadas porque Satã estaria incorporado nelas. Se fosse hoje, seriam ‘esquerdistas infiltrados’. Há pouco mais de dez anos a fértil imaginação do ex-presidente George Bush identificou o lugar onde Satã vivia aqui na terra nos dias de hoje: no ‘eixo do mal’, o Irã, Iraque e a Coreia do Norte, governos ‘satânicos’. Não era só imaginação de Bush, obviamente. A identificação do ‘eixo do mal’ justificava o apoio financeiro à indústria bélica norte-americana.

No Brasil de hoje, soltaram de novo o Diabo, símbolo do rock and roll. É verdade, no ambiente do rock Satã é presença constante. Ele adora o ritmo, costuma tocar em bandas de hard rock, e não perde um show do Sepultura. Raul Seixas já dizia, “o Diabo é o pai do rock”. De Elvis Presley aos Beatles, passando pelos Rolling Stones, Kiss, Guns n’Roses, ACDC, Black Sabbath e outros, Satã está presente no ambiente do rock. Integrantes de algumas dessas bandas se declararam praticantes de seitas demoníacas, embora na cultura pop era uma tirada mercadológica, só uso comercial da figura e símbolos satânicos.

O padre canadense Jean-Paul Regimbal publicou há alguns anos o livro Le rock and roll, onde faz uma contundente crítica aos poderes inebriantes do rock. O musicoterapeuta mexicano Fernando Salazar Bañol, autor de A face oculta do rock, faz críticas semelhantes. Ambos afirmam que a batida e estética do hard rock produzem um ritmo alucinante de poderes hipnóticos. A ambientação noir e a vibração forte das batidas excitariam o cérebro dos jovens, provocariam descontrole emocional e paroxismo coletivo.

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Nas artes e na cultura, entretanto, o rock não detém a exclusividade satânica. Compositores notáveis de musica clássica confessaram ter sido inspirados pelo Diabo. O virtuoso violinista italiano Giusppe Martini compôs uma sonata chamada “O trinado do diabo”, onde há um surpreendente encadeamento de um trilo que só ouvidos sensíveis percebem. O quinto movimento da “Sinfonia Fantástica” de Berlioz é dedicado a um festim de bruxas. Satã sempre esteve presente na pintura dos renascentistas Luca Signorelli e Rafael; na literatura de Dante, Goethe, Milton, Thomas Mann, Charles Baudelaire e Fernando Pessoa. Em tempos mais recentes, em filmes dos reconhecidos cineastas Friedrich Murneau, Ingmar Bergman, René Claire.

Seitas esotéricas, facções fundamentalistas e religiosos ortodoxos associam Satã a uma conspiração universal do mal, como o paranoico Bush. Satã seria comunista de carteirinha. É preciso exterminá-lo, conforme reza o catecismo das milícias digitais e dos organizadores do acampamento neo-nazista “Os 300 do Brasil”. Na história, como nos artistas acima citados, ele representa o lado divertido da vida, a liberação dos recalques, a rebeldia. Um ser da música, da festa e do carnaval. Encarna o desejo e as paixões, e por isso é associado à libido. Encarna também a insubmissão frente ao autoritarismo, à liberdade individual, ao rompimento rumo a uma auto-emancipação.

No trajeto da humanidade, o Diabo esteve quase sempre ao lado de rebeldes que não se submeteram ao pensamento único, ao lado do pensamento renovador. Não esqueçamos Giordano Bruno, um pensador rebelde que pregou a infinitude do universo e foi queimado vivo por estar ‘possuído pelo demônio’. Galileu Galilei foi excomungado porque dizia que a terra não era o centro do universo. Charles Darwin, com sua revolucionária teoria evolucionista é hoje defenestrado pelos criacionistas e terraplanistas do governo Bolsonaro.

Toda rebeldia foi quase sempre vista pelos conservadores como transgressão, má ação. Se ser maligno é se rebelar contra o pensamento único, se insurgir contra o autoritarismo, então Satã está na oposição: jamais será nomeado para compor o governo Bolsonaro.

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