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Reprodução de imagem de Janela Indiscreta, clássico de 1954 de Alfred Hitchcock

eleições 2022

A janela da infidelidade

30.03.2022 10:53 0

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Sabe aquela cena pitoresca em que uma pessoa casada chega em casa fora da hora prevista e pode descobrir que o amor da sua vida está na cama com outra pessoa? O que é que a pessoa na posição de amante faz, com medo de ser pega em flagrante e morta pela pessoa que está sendo traída no casamento?

Num primeiro momento, esconde-se dentro do guarda-roupas; em seguida, quando a barra está limpa, vai embora pulando pela janela. Já do lado de fora, ainda vestindo as calças, depara-se com o povo na rua, que assiste a tudo.

Analogamente, é o que acontece com a chamada janela partidária. A casa é o Parlamento; a pessoa traída é o partido original; a pessoa que trai, é o político infiel; a janela é a lei que permite a fuga sem deixar vestígios e a pessoa na posição de amante é o possível futuro partido namorando a possível futura filiada. E o povo? É o povo mesmo. Pasmo, assistindo a tudo, muitas vezes, sem entender nada, e as vezes, sorrindo ou se revoltando com a situação.

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Ao longo da história constitucional e legislativa do Brasil, depois de idas e vindas, de leis e emendas no parlamento e resoluções no Judiciário, para se tentar fortalecer os partidos políticos, passou a ser aplicada a regra da “fidelidade partidária”. Quando parecia que finalmente a regra funcionaria para valer, foi criada em 2015, com a Lei 13.165, a chamada “Janela Partidária”, que se transformou em mais uma hipótese de justa causa para a desfiliação de políticos sem perda de mandato. Daí em diante, uma série de novas decisões judiciais ocorreram, abrindo mais brechas à infidelidade, e, motivos não faltavam às justificativas apresentadas no Judiciário.

Até que em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral pôs um freio de arrumação e decidiu que só pode usufruir da janela partidária o político eleito que esteja no término do mandato. Com isso, a cada ano eleitoral, seis meses antes da eleição do 1° turno, os políticos com mandato ganham um prazo de 30 dias para mudar de partido sem perder o mandato por infidelidade partidária, independente do motivo. Por exemplo, os vereadores eleitos só podem migrar de partido no período da janela destinada às eleições municipais, assim como os deputados federais e estaduais, como é o caso agora, só podem migrar no período de abertura da janela das eleições gerais.

Olhando pela perspectiva do parlamentar que não considera o mandato uma construção coletiva, mas uma propriedade privada – “meu mandato, meus cargos, minhas emendas, meus votos, minhas ideias e minhas decisões” – há diversos motivos apontados como justificativa à mudança de partido: alguns chegam a declarar que “o partido quer mandar em mim e me obrigar a votar contra o que eu acredito e prometi na campanha”.

Sim, é bem verdade que a maioria dos partidos têm literalmente donos, os chamados caciques, e que em boa parte deles não há vida orgânica, nem democracia interna. Na visão de alguns políticos, portanto, a mudança de partido é vista como natural, seja para fugir da batuta dos chefes políticos locais ou nacionais, ou por uma questão de sobrevivência imediata, na tentativa de renovação do mandato.

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Mas, vale lembrar que no campo das eleições proporcionais, exceto quando, raramente, um candidato completa sozinho o quociente eleitoral para gerar uma vaga, a mudança partidária sem perda do mandato representa não só uma injustiça, mas, uma traição significativa que não diz respeito somente ao CNPJ do partido.

Por quê? Porque todo o grupo de candidatos que disputou o mesmo mandato é fortemente traído, já que, todos somaram votos para a geração daquela vaga, que passou a ser ocupada por um desses candidatos que depois da eleição abandonou o partido e levou a vaga junto com ele. Ou seja, toda a turma da “esteira” – como são chamados os que somam votos que servem para eleger outros – acaba se sentindo usada e traída. É por isso que se pergunta: o mandato pertence ao partido ou ao candidato?

Por outro lado, também não se pode ignorar que há muitos interesses em jogo, inclusive financeiros e aqui podemos destacar a importância da presença de deputados federais nos partidos: quanto mais deputados, mais tempo de propaganda eleitoral e partidária na TV e rádio e mais recursos nos fundos partidário e eleitoral, que podem ser direcionados para as campanhas eleitorais desses deputados e de seus aliados: para se ter uma ideia, agora em 2022, só o fundo eleitoral chegou a destinar quase R$ 5 bilhões.

Sinceramente, eu pergunto: depois da oficialização da janela da infidelidade, qual é a utilidade da “Lei” de Fidelidade? A garantia de que o político fica no partido até próximo do fim do mandato?

Teoricamente, sim, mas, na prática, não necessariamente, pois, com raras exceções, há políticos que perdem o mandato fora do período mágico da janela da infidelidade. Boa parte acaba fazendo acordo com o partido ou utilizando formas de pressão política para deixar o partido por qualquer conveniência e, vencida essa etapa, de quem quer deixar o partido e do burocrata que autoriza, praticamente o judiciário avaliza.

Uma democracia forte necessita de partidos fortes e de representantes que encaminhem no legislativo ou no executivo os anseios da população. A eleição de um candidato ao parlamento não deveria ser resultado de meros cálculos matemáticos, mas, o resultado de um compromisso firmado com o eleitor, baseado em ideias e propostas construídas coletivamente. E, o partido, não deveria funcionar como um mero cartório a chancelar interesses particulares, de acordo com a conveniência do momento, mas, o ambiente a mobilizar pessoas em torno da pluralidade de ideias e ideologias: um espaço de debates e do desenho conjunto de políticas públicas para melhorar a vida da nação.

Por fim, não se espante com o resultado do pula-pula que vai se encerrar neste primeiro de abril. Poderá até parecer mentira, mas a verdade é que no dia seguinte, o Brasil amanhecerá com um novo mapa de configurações partidárias após o troca-troca permitido pela janela da infidelidade.

O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].

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