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Estatuto da vítima na sociedade pós covid-19

18.12.2020 10:00 0
Atualizado em 10.10.2021 17:29

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O Projeto de Lei de Estatuto da Vítima (PL 3890/2020) visa incorporar conceito de vítima consentâneo com a vitimização histórica, coletiva e cultural presente nos dias atuais. Para além da vitimização direta e indireta propõe-se a integração da categoria da vitimização coletiva, ou seja, aquela decorrente da prática de crimes e calamidades públicas.

O projeto inova ao prever a especial vulnerabilidade de vítimas em função de sua fragilidade, idade, estado de saúde, deficiência, bem como o tipo, grau e duração da vitimização que tenha resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições de sua integração social, bem como ao abranger as hipóteses de vitimização coletiva, consoante o que segue:

Art 2°. Entende-se por vítima qualquer pessoa natural que tenha sofrido danos ou ferimentos em sua própria pessoa ou bens, especialmente lesões físicas ou psicológicas, danos emocionais ou danos econômicos causados diretamente pela prática de um crime ou calamidade pública.

  • 1°. As disposições desta lei aplicam-se as vítimas indiretas, no caso de morte ou de desaparecimento diretamente causada por um crime ou calamidade pública, a menos que sejam os responsáveis pelos fatos, entendidas estas as pessoas que possuam relação de afeto ou parentesco até o terceiro grau, desde que convivam, estejam aos seus cuidados ou dependam desta.
  • 2°. No caso de vitimização coletiva causada pela prática de crime ou calamidade pública serão adotadas medidas especiais de proteção, apoio e desvitimização. 

Parágrafo único. Entende-se por vitimização coletiva as ofensas à saúde pública, meio ambiente, sentimento religioso, consumidor, fé pública e demais hipóteses que comprometam seriamente determinado grupo social, independente de sua localização geográfica (grifo nosso).

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Com o novo cenário advindo da crise causada pela covid-19, temos nova concepção de sociedade voltada ao bem estar coletivo, nem sempre sendo possível a delimitação precisa do bem jurídico subjacente, seja em razão de seu caráter coletivo, seja pela antecipação de barreiras penais em razão da tipificação de tipos de perigo concreto e abstrato, superando-se a vestuta figura da vítima entendida como sujeito passivo do delito. O reconhecimento de direitos individuais e coletivos figuram como mínimo essencial a tutela da dignidade da pessoa humana.

1. Da necessidade de reconhecimento de direitos fundamentais às vítimas

O reconhecimento da vítima como sujeito de direitos fundamentais abrange o estabelecimento de um rol mínimo que atue de forma preventiva, especialmente a vitimização secundária, a saber:

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Art. 4°. Para os fins desse estatuto são assegurados às vítimas o direito à comunicação, defesa, proteção, informação, apoio, assistência, a atenção, ao tratamento profissional, individualizado e não discriminatório desde o seu primeiro contato com profissionais da área da saúde, segurança pública e que exerçam funções essenciais de acesso à justiça, à colaboração com as autoridades policiais, Ministério Público e Poder Judiciário, sendo garantida sua efetiva participação e acompanhamento mesmo após a cessação do tratamento de saúde ou julgamento do processo criminal.

A conscientização de que todos os atores do sistema de justiça e de saúde devem atuar de forma colaborativa põe em evidência que a responsabilidade pela obtenção da justiça social não pode ser relegada apenas ao Poder Judiciário. Mutatis mutandis, a eliminação de prazos decadenciais na seara penal guarda relação lógica com o microssistema de proteção as vítimas, uma vez há uma antinomia real no sistema em que a vítima que ainda não percorreu todos os passos do caminho de ruptura da vitimização (v.g. negação do próprio fato de ter sido vítima) possa perder o direito ao seu exercício. (cf. art. 4°, parágrafo único do Projeto de Estatuto da Vítima).

2. Ciclo de vitimização

Vitimização é “o processo pelo qual uma pessoa sofre as consequências de um fato traumático”. A palavra trauma vem do grego traumat e significa ferida. Com frequência, é resultado de violência, que pode ser causada pela natureza (desastre natural) ou pelo ser humano (de uma pessoa a outra, a um grupo ou sociedade). A violência pode assim ser natural (furacões, terremotos), verbal (intimidação, insultos, humilhação ou ameaças), estrutural (pobreza, racismo, gênero, etc) ou decorrente de guerra. A violência crônica prejudica as relações sociais, as instituições e leva à sua banalização.

Os tipos de traumas são individuais ou coletivos, podendo ter origem em um evento único ou cumulativo. O trauma individual, se subdivide em secundário ou compartilhado, participativo e de violação da dignidade. Por sua vez, os traumas coletivos se dividem em trauma histórico, cultural e estrutural

O trauma é, portanto, fonte de vitimização por excelência. A vitimização comporta diversos níveis, conforme o desenvolvimento do evento traumático respectivo: vitimização primária, vitimização secundária e vitimização terciária.

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A vitimização primária “é o processo pelo qual uma pessoa sofre, de modo direto ou indireto, danos físicos ou psíquicos derivados de um fato delitivo ou acontecimento traumático”. A vitimização secundária constitui o conjunto de custos pessoais para a vítima de um crime, abrangendo desde o seu interrogatório policial ou judicial, a realização de perícias e o contato com o ofensor, até o tratamento despendido ao fato pela mídia. 

A vitimização terciária abrange o conjunto dos custos da penalização de quem a suporta, pessoalmente ou terceiros. Refere-se à relação custo/benefício entre o dano causado pela infração penal à vítima e à sociedade e o custo/benefício da penalização para o próprio infrator e a sociedade. Já a vitimização quaternária se refere aos impactos negativos produzidos pelos veículos de imprensa e redes sociais.

Os quatro fatores interagem e devem ser analisados com cuidado, pois a estratégia de neutralização da responsabilização pelo fato (v.g. acusações de comportamento provocador da vítima ou a imputação de fatos inexistentes), por exemplo sob a alegação de que possui condição socioeconômicas inóspitas, acarreta a atribuição da responsabilidade à vítima e, portanto, sua revitimização.

O sistema de proteção à vítima tem por objetivos garantir a vida, a integridade física, a segurança, a liberdade e a indenidade sexual das vítimas e de seus familiares, e salvaguardar sua intimidade, dignidade e dos riscos da vitimização secundária ou reiterada.

A proteção em sentido estrito se refere à proteção da vítima no, através, em respeito ou independente do processo penal. As medidas de proteção à vítima devem zelar para a desvitimização desde o primeiro contato dela com os órgãos de saúde pública, persecução penal e o Poder Judiciário. 

A vitimização delitiva pode ser analisada a partir de três perspectivas básicas: a vulnerabilidade pessoal das vítimas, suas carências sociais e sua exposição ao delito. Illescas atribui a esse fenômeno a expressão modelo do triplo risco vitimógeno (TRV), em complementariedade à estrutura especular do triplo risco delitivo (TRD). Pelo modelo do TRD, o comportamento criminal abrange: riscos pessoais (v.g. elevada impulsividade, valores antissociais, baixa empatia); carências de apoio pró-social (v.g. baixa supervisão, abandono escolar, amigos delinquentes) e exposição reiterada a situações de oportunidade delitiva (v.g. passar muito rápido na rua, fácil acesso a dinheiro e valores desprotegidos). 

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Conclusões

O Estado de Direito Democrático visa à realização de democracia econômica, social e cultural. Em matéria penal, concluímos que para atingir essa finalidade, o Estado é depositário do dever de atribuir segurança aos seus cidadãos, intervindo na ordem econômica e social, devendo desenvolver políticas públicas que contemplem ao mesmo tempo medidas preventivas ao risco da vitimização e ao risco da delinquência, por serem fenômenos indissociáveis.

A verdadeira dignidade e igualdade social não será passível de ser obtida tão somente por meio de sua ponderação com a liberdade dos cidadãos, mas pelo seu contraponto com os deveres de solidariedade ínsitos ao pacto social. Portanto, o equilíbrio de ambos os valores constitucionais não é passível de ser obtido em sua forma estática, mas tão somente em função da dinâmica interativa entre eles.

O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected]

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