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Não é gentileza: um depoimento sobre violência política de gênero

08.03.2021 18:17 1
Atualizado em 10.10.2021 17:28

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É muito frustrante para uma mulher que atua na política, que luta pela igualdade de gênero e que trabalha com denunciantes na defesa de direitos, não conseguir falar.

Trabalhar com política sempre me colocou em ambientes dominados por homens, quase sempre homens brancos e mais velhos. Isso nunca me afastou e eu nunca tive medo de engravatados, mas, quando comecei, eu nunca pensei que ser mulher determinaria tanto algumas coisas na minha atuação até o dia que fui parar em Brasília.

Eu já tinha ouvido muitos relatos de outras mulheres sobre a selva que é o Congresso Nacional e sobre o que é ser mulher ali dentro. A primeira vez que estive lá, em 2012, o senador com quem me reuni não olhou para mim durante toda a reunião, dirigindo-se o tempo todo somente ao meu colega (homem) e, ao final, me entregou seu cartão de visita referindo-se a mim como se eu fosse secretária do meu colega. Lembro ainda de ficar assustada com olhares vindos sem qualquer discrição ao andar pelos corredores. Entendi o que outras mulheres diziam sobre se sentir um pedaço de carne ali dentro.

Voltei para o Congresso Nacional em 2019, com a missão de dialogar com diversos parlamentares sobre as Novas Medidas contra a Corrupção. Era uma maratona de reuniões de gabinete em gabinete. Do Psol ao PSL, passando pelo PT, PSDB, Novo, PSB, PDT e tantos outros partidos. O desafio era criar pontes e abrir diálogo para combater a corrupção de forma sistêmica com o compromisso de todos: esquerda, direita, progressistas e conservadores.

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Eu me preparava muito para essas reuniões. Dialogar com diferentes ideologias e campos opostos exige muita coerência e certeza do que defendemos, além de jogo de cintura e paciência. Porém, meu preparo ia além, porque sendo mulher a exigência é muito maior. A gente se preocupa com a roupa que veste e se está dando brechas a mal entendidos. E todo esse esforço pode ser em vão. Mesmo séria, até sisuda, eu fui assediada por parlamentares diversas vezes. Recebi risinhos, elogios exagerados e que não tratavam do meu trabalho, abraços pegajosos e cantadas, algumas disfarçadas outras escancaradas, e até mensagens ousadas. Com o tempo eu decidi, silenciosamente, que em alguns gabinetes eu não entraria mais sozinha e só com um colega homem.

Certo dia, no meio dessa maratona, acordei animada porque conseguimos a agenda de um deputado muito conhecido e com um posto importante em um partido relevante para ajudar a despolarizar o debate anticorrupção no país, que foi capturado por um discurso populista e de ódio. Um amigo meu, que também é próximo do deputado, tinha me alertado sobre algumas desconfianças dele em relação ao nosso trabalho e eu estava determinada a convencê-lo da importância da pauta para combater as desigualdades no Brasil e trazê-lo como um aliado dessa luta.

Fomos em três para a reunião: eu, o diretor-executivo da minha organização e minha colega que era responsável por advocacy na época. Meu diretor me deu espaço e pediu para que eu tomasse frente. O deputado nos escutou, interagiu, debateu e elogiou nosso trabalho e tudo que eu apresentei. Se mostrou muito mais interessado do que eu esperava. Lembro que o abraço dele ao tirarmos a foto ao final da reunião, que fazíamos em todos os gabinetes,  na hora de se despedir foi um pouco alongado e me chamou atenção. Mas logo pensei que era coisa da minha cabeça e foquei no que tínhamos conseguido ali. Saí do gabinete dele com a sensação de dever cumprido, sabe?! Tínhamos conseguido abrir um diálogo importantíssimo com uma liderança fundamental. Além disso, tinha uma satisfação pessoal minha porque aquele era um deputado por quem eu tinha muito respeito e admiração. Eu acreditava na forma que ele fazia política e poder trabalhar e construir mudanças ao lado de quem admiramos é gratificante. Celebrei com os colegas e com a equipe o fato e segui para a próxima reunião.

Mal tínhamos entrado no próximo gabinete quando recebi uma mensagem do deputado no meu celular. Vi a notificação de um número não salvo e a foto dele e estranhei. Não é tão comum deputados falarem diretamente com a gente, ainda mais quando ainda não há um relacionamento consolidado. Normalmente somos nós que vamos atrás deles ou os assessores que nos procuram. Agradeci o contato, falei da importância da pauta novamente e me coloquei à disposição. Ele não escreveu para o meu diretor nem para minha colega que estiveram comigo na reunião.

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Não satisfeito com meu agradecimento, ele enviou novas mensagens. Havia uma insistência e interesse dele em continuarmos a conversa durante a noite. Estranhei e demorei um pouco para entender o que estava acontecendo, talvez até por não querer acreditar no que estava acontecendo.

19:10 – Queria te ouvir mais. Muita coisa pra fazer. Volto amanhã para [nome da cidade retirado], mas fico hoje à noite aqui. Que hotel você está? Posso ir até aí

22:01 – Chamada de voz perdida

22:40 – Acordada? Me liga. Não durmo cedo, me liga se estiver acordada.

Eu pensei em inventar uma desculpa, dizer que estava cansada e que tinha que trabalhar cedo, mas quando vi ele me ligando a minha reação imediata foi desligar o celular. Era um misto de decepção com indignação. O interesse todo dele mais cedo não era na nossa pauta ou agenda. O orgulho que eu tive do meu desempenho profissional estava totalmente equivocado. ‘Pô, até você? Logo você?’, eu pensava inconformada. Eu apostava naquele cara, eu achava que ele fazia uma política diferente. Eu achava que ele era um aliado não só do meu trabalho, mas da luta por direitos e, inclusive, pela igualdade de gênero. Pensei na família dele, na esposa dele que é uma mulher que eu admiro muito.

E pensei na sutileza da abordagem dele, das mensagens, da segurança dele. Não havia o menor sinal de uma preocupação do lado dele de eu divulgar as mensagens. Ele sabia bem a posição de poder que ocupava e como ele era importante para o meu trabalho. Não cedi, mas também não tive coragem de enfrentá-lo. Na manhã seguinte, quando liguei meu celular respondi dando a desculpa de que tinha ficado sem bateria e disse na minha próxima ida a Brasília marcaríamos uma nova reunião no gabinete dele. Ele respondeu, no mesmo minuto, dizendo que foi uma pena, mas que gostaria de me ver em breve. Aquilo me rasgava por dentro.

Eu nunca o denunciei ou reclamei. Consegui falar sobre isso somente com dois amigos. Não consegui sequer contar para minhas amigas mais próximas pensando na decepção que seria para elas também. Tive medo de prejudicar minha organização, medo de prejudicar nossa pauta e de perder o apoio de um deputado importante. Tive medo até mesmo do impacto no cenário político do país devido à importância do deputado. Eu me calei. Me calei como muitas devem ter se calado. Cheguei a minimizar o assédio tentando convencer a mim mesma que não tinha sido nada. Para além do meu trabalho, ainda tinha chances de eu ser pintada como mais uma louca que interpretou de forma errada um ‘gesto de gentileza’ de um deputado – isso acontece o tempo todo. Acabou de acontecer na Alesp, onde o deputado estadual Fernando Cury disse que o assédio que cometeu contra a deputada Isa Penna foi somente ‘um gesto de gentileza’.

Esse episódio não foi o único, mas me marcou pela sutileza do abuso do poder e por me deparar com a velha política onde eu menos esperava. E, claro, não é para demonizar e nem generalizar, muitos parlamentares sempre me trataram bem, de forma respeitosa e com muito profissionalismo. Mas o que passei acontece o tempo todo no meio político e em níveis muito mais graves, afastando mulheres da política. E mesmo dois anos depois, minhas inseguranças são as mesmas. A intimidação que senti permanece. Ainda não consigo denunciar ou levantar o nome do deputado, mesmo tendo todo o apoio da direção executiva da minha organização para fazer isso se eu me sentir confortável. E sabe, é muito frustrante para uma mulher como eu, que atua na política, que luta pela igualdade de gênero e que trabalha com denunciantes na defesa de direitos, não conseguir falar.

Duas semanas atrás, participei de uma roda de conversa com meninas sobre ‘extorsão sexual e corrupção’ em que contei essa história e debatemos casos mais graves onde mulheres precisam pagar com seus próprios corpos para ter acesso a direitos. Ao final, uma das meninas, com 17 anos, me perguntou: “Mas Nicole, e aí? O que a gente faz? Não tem jeito? Como a gente muda isso? Todo mundo que entrar lá vai ser assim?”.

Eu me perguntei isso durante muito desde o dia que entrei naquele gabinete. Cheguei questionar meu trabalho, minha atuação e se minha luta realmente valia a pena. Senti raiva, nojo, desacreditei de mim mesma. Tive raiva de mim por não ter coragem de falar.  E se eu, que no meu lugar privilegiado, não consegui agir, fico pensando em tantas mulheres que não podem escapar e tem que aceitar serem vítimas para garantir um emprego ou não serem descredibilizadas e expostas. Duvidei da mudança, duvidei de mim.

Em todo o mundo, mulheres sofrem desproporcionalmente mais com a corrupção. Para além do assédio e da extorsão sexual, leis injustas e misoginia tornam difícil ou mesmo impossível que a gente participe da política. O cenário no Brasil tem se mostrado cada vez mais violento. E a violência política de gênero pode ser física, sexual ou psicológica. Pode vir em forma de assédio ou desqualificação e escalar para ameaças, atentados e até o feminicídio. A impunidade perpetua e agrava todas essas violências. E todas elas são um ataque ao próprio sistema democrático que permite que ocorram desde assédios nos corredores das casas legislativas do Brasil até o assassinato covarde de Marielle Franco que segue sem reposta.

Eles querem que a gente duvide do que podemos ser e fazer. Deixar que eles roubem nossa luta e tirem de nós o que acreditamos é inaceitável. Afastar e silenciar mulheres da política é o que essa elite patrimonialista, machista, branca e agarrada em práticas corruptas que está no poder hoje quer. Foi por isso que mataram Marielle. E é por isso que tentam afastar, por meio de ameaças e atentados, outras tantas mulheres que ocuparam esses espaços recentemente. Mudar esse cenário é imperativo, e foi por isso que não desisti e que também peço para todas as mulheres que estão lendo isso que não desistam.

Mais do que nunca, precisamos seguir juntas, ocupar a política em todas as suas formas, apoiar e fortalecer as mulheres que lá estão e as que querem estar. E sem sermos inocentes ou ingênuas ou sonhadoras, como se disputar esses espaços fosse seguro ou heroico. É perigoso, é desgastante, é violento. Mas não tem outra via. Ou a gente muda isso ou eles não farão por nós.

O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].

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Uma resposta para “Não é gentileza: um depoimento sobre violência política de gênero”

  1. 13582196 disse:

    Genero só tem dois, homem e mulher, COM BASE NA CIÊNCIA DO DNA.
    Todo o resto não passa de doença mental negligenciada por psicólogos, psicanalistasve psiquiatras militantes que permitem que a doença mental seja explorada para fins políticos.

    Quanto a questão das empresas, homens possuem direito a apenas 5 dias licença paternidade, e não sofrem de TPM, mas em virtude dela.
    As pessoas que trabalham em uma empresa tem de estar dispostas a evoluir, tem de aprender a dialogar verbalmente e visualmente, e devem aprender sobre funcionamento e gerenciamento da empresa, aprender sobre o gerenciamento dos recursos e dinheiro sem desperdício, aprender a ajudar a empresa a lucrar para poder crescer e contratar mais trabalhadores.
    O trabalhador tem de evoluir internamente para crescer na empresa.
    Lembrem se, não serão aceitas apenas por serem líderes, nem por decreto, mas apenas quando forem aceitas por todos é que se tornarão líderes.

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