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Por que o Estado Islâmico ameaça

03.11.2014 09:00 0

Reportagem
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Em artigo recente publicado no New York Times, Slavoj Zizek, famoso por obras desde Benvindos ao deserto do real até Vivendo no fim dos tempos, aborda em profundidade a questão do Estado Islâmico – ou Isil, na sigla em inglês para Estado Islâmico do Iraque e do Levante – e seus desdobramentos na atual geopolítica.

Segundo ele, tornou-se norma, nos últimos meses, observar que o crescimento do Estado Islâmico seria o último capítulo na longa história do despertar anticolonial, no qual estariam sendo redesenhadas as arbitrárias fronteiras traçadas depois da 1ª Guerra Mundial pelas grandes potências. Ao mesmo tempo, esse seria mais um capítulo na luta contra o modo como o capital global mina o poder dos Estados-nação.

Abre aspas…

Mas o que causa tanto medo e consternação é outro traço do regime do Isil. As declarações feitas por porta-vozes do Estado Islâmico deixam bem claro que a principal tarefa do poder do Estado não é regular o bem-estar da população (saúde, a luta contra a fome). O que realmente interessa é a vida religiosa e a preocupação de que toda a vida pública obedeça a leis religiosas. Por isso é que o Isil se mantém mais ou menos indiferente às catástrofes humanitárias dentro de seus domínios. Seu mote é assim: “cuide da religião, que o bem-estar cuida de si próprio”.

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Eis a fenda que separa a noção de poder praticada pelo Isil e a moderna noção ocidental do que Michel Foucault chamou de “biopoder” – que regula a vida de modo a garantir o bem-estar geral. O califado do Isil rejeita totalmente a noção de biopoder.

Mas isso faz do Isil um Estado pré-moderno? Depende.

Em vez de ver no Estado Islâmico um caso de resistência extrema à modernização, deve-se concebê-lo como um caso de modernização pervertida, inserindo-o no conjunto das modernizações conservadoras que começaram com a restauração Meiji no Japão do século 19 (leia-se aqui uma ligeira modernização e o retorno da plena autoridade do imperador). E como seria o caso mesmo do Brasil – categorizado também por uma modernização conservadora –, mas que presentemente não vem ao caso, ainda que seja importante situá-lo na geopolítica da época.

Zizek observa que a famosa imagem de Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Isil, portando um luxuoso relógio suíço no pulso é, aí, emblemática: o Isil é bem organizado para se divulgar pela rede & negócios financeiros, embora tais práticas pós-modernas sejam usadas para difundir & reforçar uma visão ideológico-política que, mais que conservadora, parece refletir um movimento desesperado para ‘assinalar’ delimitações hierárquicas bem visíveis.

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Contudo, não se deve esquecer que essa imagem de organização fundamentalista estritamente disciplinada e regulada não está livre de ambiguidades: será que haveria ausência de opressão religiosa nos locais nos quais as unidades militares do Isil parecem operar? Ora, ao mesmo tempo em que a ideologia oficial do Estado Islâmico pontifica contra a permissividade ocidental, a prática diária de suas gangues inclui orgias em ampla escala, roubos, estupros seriais, tortura e assassinato de infiéis.

Observada bem de perto, a aparentemente heróica prontidão do Isil para arriscar tudo é ainda mais ambígua.

Há muitos anos, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilização ocidental estava andando na direção do Último Homem: uma criatura apática, sem grande paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, não se expondo a riscos, buscando só conforto e segurança: “Um pouco de veneno de vez em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno por fim, para uma morte agradável”.

Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas se cuida para que a distração não canse. Ninguém mais se torna rico ou pobre: as duas coisas dão trabalho. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda adoecer? Ambas as coisas são árduas. Todos querem o mesmo, todos são iguais, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntariamente para o hospício. ‘Descobrimos a felicidade’, diz o Último Homem, e eles piscam o olho.”[1]

Parece que a fenda que separa o permissivo Primeiro Mundo – e a reação fundamentalista ao mesmo – acompanha cada vez mais as linhas da oposição entre viver vida longa e feliz, cheia de riqueza material e cultural, de um lado e, de outro, dedicar a própria vida a uma causa transcendente. Não seria isso o que Nietzsche chamou de antagonismo entre niilismo “passivo” e niilismo “ativo”?

Para Zizek, nós, no Ocidente, somos o Último Homem nietzscheano – imerso em estúpidos prazeres diários – enquanto os muçulmanos radicais estão prontos a arriscar tudo, engajados na luta até à morte. A segunda vinda de W.B. Yeats parece dar conta de nosso sofrimento atual: “Aos melhores falta qualquer convicção, enquanto os piores estão cheios de paixão.”

Essa pode ser uma excelente descrição da atual fissura entre liberais anêmicos e fundamentalistas apaixonados. Os melhores já não conseguem se  engajar plenamente,os piores se engajam apaixonadamente no fanatismo racista, religioso e sexista.

Realmente um zeitgeist do capeta. Geopoliticamente falando, um lixo ideológico absoluto. Vivem-se tempos suecos: sem nenhum charme, sem encanto, sem espanto, o suicídio vira mais que opção – vira tentação, objetivo, ambição, meta. Exagero? Filosoficamente falando, não.

No entanto, nosso autor dá mais um passo adiante: mas os terroristas fundamentalistas serão realmente fundamentalistas no sentido autêntico da palavra? Será que realmente creem? Fato é que lhes falta um traço fácil de identificar nos fundamentalistas autênticos – de budistas tibetanos aos amish norte-americanos – a ausência de ressentimento e inveja; a profunda indiferença em relação ao modo de vida dos que não creem.

Se os chamados hoje fundamentalistas realmente acreditassem, teriam encontrado a própria trilha rumo à Verdade e não se sentiriam tão ameaçados pelos “não crentes”. Por que invejá-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, ele dificilmente o condena, apenas observa com benevolência que a busca de felicidade do hedonista se autoconsome, se autoderrota.

Ao contrário dos verdadeiros fundamentalistas, os terroristas pseudo-fundamentalistas se sentem profundamente perturbados, intrigados e fascinados pela vida pecaminosa dos infiéis. Sente-se que, ao combater o outro-pecador, eles combatem a tentação que os consome. Por isso, os chamados fundamentalistas do Isil são uma desgraça para o verdadeiro fundamentalismo.

É onde o diagnóstico de Yeats falha para explicar a desgraça de hoje: a intensidade apaixonada de uma gangue é manifestação de uma falta de verdadeira convicção. No fundo, os terroristas fundamentalistas também não conhecem a convicção profunda – as explosões de violência são prova disso. Deve ser muito frágil a convicção do muçulmano que se sente ameaçado por uma caricatura estúpida desenhada por um jornalista estúpido num estúpido jornal dinamarquês de baixa circulação.

O terror fundamentalista islâmico não tem raiz na convicção dos terroristas – da sua própria superioridade e no desejo deles de salvaguardar a sua identidade cultural religiosa contra o massacre pela civilização do consumo global. O problema com o terrorista fundamentalista não é que nós o consideremos inferior a nós, mas, ao contrário, que eles se consideram, em segredo, inferiores.

Vai daí que nossa arrogante condescendência ­– as repetidas garantias “politicamente corretas” de que não nos sentimos superiores – só fazem enfurecê-los cada vez mais e alimentam neles o ressentimento. O problema não é diferença cultural (o esforço deles para preservar a identidade deles), mas o fato exatamente oposto de que eles secretamente internalizaram nossos padrões e avaliam-se também por estes.

… fecha aspas.

Aí estão, desmascaradas por Zizek, as motivações escusas e as falsas convicções do Isis e, paralelamente, as nossas próprias, mas não menos inconfessadas – algo que intimamente percebíamos, mas não conseguíamos dar plena expressão. E nada ameaça mais do que o desconhecido. De dentro e de fora.


[1] NIETZSCHE, F. [1883-1885], Assim falou Zaratustra, São Paulo: Companhia das Letras, trad. Paulo César de Souza, 2011.

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