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Manifestação contra a invasão da Ucrânia pela Rússia. Foto: Gayatri Malhotra/Unsplash

INTERNACIONAL

A névoa da guerra: reflexões sobre o conflito na Ucrânia

06.10.2023 08:15 0

Opinião Em
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Lucio Reiner *

Sofremos, diuturnamente, um bombardeio de informações a respeito da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Contudo, existe uma dificuldade em verificar e, mais ainda, conhecer, o que de fato está ocorrendo e por quê. Do lado ocidental, onde nos situamos, há uma evidente canalização simplificadora determinando que a Rússia é o vilão e a Ucrânia uma inocente vítima. Do outro lado (Rússia, China, e outros), é exatamente o oposto!

É fácil, e até produtivo, simplificar realidades complexas, propondo soluções rápidas para conflitos bélicos mediante “vontade política” ou banalidades similares. Isso conduz boa parte dos eleitores a aceitar decisões unilaterais dos governos que redundam em imensas despesas militares (um pleonasmo, arrisco) e a tender a deixar outros itens das agendas nacionais em compasso de espera.

O título “a névoa da guerra”, síntese de uma reflexão de Clausewitz, refere-se ao documentário sobre a guerra do Vietnã protagonizado por Robert McNamara, então secretário de Defesa dos Estados Unidos, onde este reconhece os erros que levaram à derrota americana. A posteriori fica fácil ver o óbvio, mas que a “névoa” impede de enxergar.

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A história da Ucrânia e da Rússia remonta a mais de um milênio. Curioso é constatar que a Rússia atual tem sua origem em… Kiev, o então Rus de Kiev, lá pelos séculos 9 e 10. Desde aquele passado longínquo, ambas as nações têm conhecido conflitos e reconciliações que o espaço aqui disponível não nos permite detalhar. Vamos nos ater aos fatos mais recentes.

Com a implosão da União Soviética, surgiram ou ressurgiram um número de estados independentes.

A Ucrânia foi um deles, ocupando o espaço da antiga República Socialista Soviética da Ucrânia que era até (como a atual Belarus) membro da ONU. Foi uma esperteza de Stálin para ter mais 2 votos. Esse território ucraniano era fruto de espólios de guerra, parte da Romênia, parte da Hungria, parte da Polônia e foram incorporados, após 1945, ao território ucraniano original. Em 1954, o então líder soviético Kruschev, ucraniano, cedeu a Criméia à Ucrânia, tirando-a da Rússia.

Fica evidente que o território da Ucrânia atual é uma construção recente e que, de fato, o país nunca foi um estado independente até 1991. Isto é importante para entender, mas não justificar, a retórica russa. A Rússia, por seu lado, também se encontra em uma situação inédita, ao ter perdido abruptamente sua vasta zona de influência que ia da Ásia Central ao coração da Europa.

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Os personagens também devem ser levados em consideração. Putin, protótipo de vilão ideal, ex-agente da KGB, saudoso da pretensa glória da finada União Soviética e determinado a restaurar o poderio da Rússia. Biden, claudicante presidente dos Estados Unidos, político experiente que viu a oportunidade de dinamizar a influência norte-americana na Europa e ressuscitar a Otan. Zelensky, o líder inesperado, ator de telenovelas eleito presidente por cansaço da população com a corrupção e o desgoverno, com a popularidade em queda vertiginosa até a invasão russa, intuiu o papel da sua vida: Defensor do Ocidente.

Nesse enredo ocorre a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022. O roteiro parecia simples: Colocar um governo títere em Kiev subordinado aos interesses russos (não foi assim de 1920 até 1991?) e, en passant, controlar o mercado mundial de alimentos. Deveria ser como em 2014, quando da anexação da Criméia, Donetsk e Lugansk, quando os ucranianos fugiram como lebres. Erro trágico de leitura. A Ucrânia apresentou resistência ferrenha, pior, Zelensky utilizou de modo brilhante as mídias e ganhou a guerra da comunicação.

Esses dois últimos elementos abriram oportunidades. A União Europeia vertebrou-se, a OTAN ressuscitou, os EUA tornaram a ser os campeões do “Mundo Livre” (ma non troppo). Negócios floresceram: oportunidade ímpar de livrar-se de material obsoleto (tanques, aviões) ou perto da data de validade (mísseis, munições). Novas tecnologias puderam ser aplicadas em situação real de conflito, laboratório valioso para futuras guerras. Assim como a guerra civil da Espanha (1936-1939), o teatro de operações na Ucrânia é um campo de ensaio bélico em um país de segunda ordem.

De quem é a culpa? A Rússia rasgou o Memorado de Budapeste, de 5 de dezembro de 1994, pelo qual garantiu a inviolabilidade das fronteiras da Ucrânia em troca da entrega das armas nucleares desta. A Ucrânia descumpriu o Protocolo de Minsk, de 5 de setembro de 2014, que suspendeu o conflito em Donetsk e Lugansk ao não implementar a autonomia dessas regiões. Acresce que a Rússia invadiu um país soberano, violando a carta da Nações Unidas, e que está praticando crimes de guerra em território ucraniano.

Quanto à acusação de “neonazismo”, vale para os dois bandos. A Rússia tem a desfaçatez de utilizar esse argumento quando utiliza um exército de mercenários de clara inspiração fascista, até no nome, “Wagner”, não muito eslavo, que se diga. E na Ucrânia há bandos fascistóides como o batalhão Azov, que utilizam símbolos adaptados das divisões das SS nazistas.

Como e quando vai acabar o conflito? Sou cético a respeito da possibilidade de vitória da Ucrânia no campo de batalha, a relação de forças é por demais desproporcional. Uma vitória russa será uma vitória de Pirro, um custo absurdo para um ganho minúsculo, a conquista de toda a Ucrânia está fora de cogitação, a blitzkrieg de Putin fracassou. Agora, a Rússia aposta numa guerra longa e no desgaste da coalizão ocidental que sustenta a Ucrânia. O sofrimento da população da Ucrânia parece longe de acabar.


* Lúcio Reiner é bacharel e mestre em Relações Internacionais, respectivamente pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris e pela Universidade de Brasília. É consultor aposentado da Câmara dos Deputados, onde foi chefe da Assessoria Internacional da Presidência.

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